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QUI, 15 DE MAIO DE 2014
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Entre
a ampla bibliografia lançada para os cinquenta anos do golpe militar, o breve
ensaio Ditadura e democracia no Brasil [Rio de Janeiro: Zahar,
2014], do historiador Daniel Aarão Reis, destaca-se pela defesa de tese e de
proposta surpreendentes, para não dizer mais. Vejamos a tese: literalmente
sem enrubescer, o autor encurta a ditadura em seis anos. Para ele, ao
contrário do tradicionalmente proposto, a ordem militar durou apenas 15 anos,
e não 21. Ela teria chegado ao fim durante o governo Ernesto Geisel.
A
revelação de Daniel Aarão Reis não é menos paradoxal. Ele retoma com enorme
ênfase a proposta já um tanto velha de que a ditadura não foi regime
meramente militar! Com outros historiadores, em suas pesquisas, teria
descoberto que a ordem militar foi apoiada também por civis, conhecendo,
sempre, apoio entre a população não-fardada! Portanto, mais correto seria
denominá-la de ditadura cívico-militar, como se tem proposto. Entre outras
comprovações dessa importante descoberta estariam a “Marcha por Deus, pela
Pátria e pela Família” e os índices eleitorais da ARENA durante aqueles anos!
Para
Daniel Aarão Reis, a ditadura interrompeu-se durante o governo Ernesto
Geisel, quando o ditador devolveu à sociedade alguns preceitos
constitucionais. Os anos finais de seu governo e toda a presidência do “homem
que amava os cavalos” seriam período pós-ditatorial, de “transição
democrática”. Essa última teria se iniciado “com a revogação das leis de
exceção [...] em 1979” e terminado “com a aprovação” da Constituição de 1988.
[p.125]
A
Ditadura Encurtada
Envolvido
em seu formalismo institucional, o autor vacila na própria qualificação de
parte do governo Castelo Branco como ditadura nua e crua. “Em seus últimos
meses de governo, Castelo Branco efetuou ações estratégicas no sentido de
institucionalizar a ditadura, dotando-a de um direito autoritário que
pudesse, porém, prescindir do recurso continuado a atos de exceção”. A
materialização desse projeto “significava, objetivamente, a superação do
estado de exceção, ou seja, da ditadura”. [p.64]
Procederiam,
portanto, as propostas dos apologistas de Castelo Branco como um general de
foro constitucionalista, ainda que conservador. O certo é que, em 24 de
janeiro de 1967, no final do governo castelista, era promulgada Constituição
que, segundo Daniel Aarão Reis, punha fim à ordem ditatorial substituindo-a
por “estado de direito autoritário”. [66] Portanto, parte daquele governo e
da administração de Costa e Silva, até o AI 5, seriam governos
constitucionais, regidos por preceitos constitucionais, ainda que
imperfeitos.
Ditadura,
mesmo, dura e crua, seria a conhecida de 13 de dezembro de 1968, com o AI 5,
até a magnanimidade de Ernesto Geisel. Segundo o autor, a restauração
da “ditadura aberta” teria sido feita a partir de movimento defensivo do alto
mando militar, inquieto, devido a uma conjuntura social e política que “podia
eventualmente se condensar e oferecer perigo real de desestabilização da
ordem [...]”. Como veremos, ele propõe que o próprio golpe foi iniciativa
defensiva do alto comando militar diante de perigo real. [p.71]
Portanto,
não deveremos estranhar caso Daniel Aarão Reis revele, proximamente, que o
país conheceu apenas dez anos de ditadura militar [desculpem-me,
cívico-militar], ao contrário dos 15 que atualmente propõe. Maldade, mesmo,
apenas desde o AI 5, em fins de 1968, até a efetivação do “pacote de medidas
liberalizantes” [sic] de setembro de 1978, de Ernesto Geisel. Para o autor,
em inícios de 1979, com a obsolescência dos atos institucionais, “revogava-se
o estado de exceção, ou seja, a ditadura”. [pp.116, 123]. E pensar que
desconhecíamos, naquele então, que não vivíamos mais sob ordem ditatorial!
Formalismo
Institucional
Em
processo explícito de substituição da essência dos fenômenos por sua
aparência, Daniel Aarão vê a democracia que decresce ou que cresce onde recua
ou avança o respeito formal a normas institucionais. Como nos casos de
Castelo Branco/Costa e Silva e Ernesto Geisel/João Figueiredo. Vê o fim da
ditadura e início da transição democrática na restauração
formal de normas legais, respeitadas ou desrespeitadas ao bel prazer pelo
alto comando militar.
Devido
ao seu formalismo, como não houve modificação constitucional essencial nos
anos Geisel-Figueiredo-Sarney, o autor define todo o período como de
“transição democrática”. A ruptura de qualidade não teria se dado na entrega
do poder pelo último ditador [ditador, não! Presidente ou quase], mas apenas
quando da Constituição de 1988. Geisel e Figueiredo seriam, portanto, quase
presidentes e Sarney, o primeiro presidente após 1985, um meio-ditador!
Não
é difícil compreender por que há consenso historiográfico em torno do fim da
ditadura em 1985, quando da assunção de José Sarney, vice-presidente na chapa
oposicionista de amplo consenso. E não apenas quando da plena vigência da
Constituição de 1988, que formatou constitucionalmente a nova forma do
exercício dos poderes republicanos que emergiram da ordem militar.
Do
Poder Militar ao Civil
Em
15 de março de 1985, mesmo nos marcos da Constituição ditatorial apenas
retocada, com a diplomação de José Sarney, as rédeas do hipertrofiado poder
presidencial passaram totalmente para as mãos de um civil, representante do
amplo bloco político-social oposicionista, sob a hegemonia dos segmentos
democrático-burgueses e conservadores.
De
1964 a 1985, o poder de mando sobre a sociedade fora exercido em forma
monopólica pelo alto mando militar, através dos poderes executivo,
judiciário, legislativo e da coerção direta. Fossem quais fossem as
concessões institucionais formais, elas eram ou podiam ser violadas explícita
e implicitamente, segundo a vontade do poder ditatorial. Realidade que se
manteve até o último dia do governo de João Figueiredo.
A
partir da presidência de José Sarney, o feixe de poderes escapou totalmente
das mãos da alta oficialidade. Agora, para ela intervir na sociedade,
necessitava apoderar-se do poder através de novo golpe e de nova deposição do
poder civil. Em verdade, desde então, o alto comando perdeu espaço de
gerência da própria instituição militar. Por exemplo, já não mais determinava
o orçamento das forças armadas.
Ditadura
Militar Burguesa
O
caráter essencialmente burguês do golpe militar de 1964 é questão patente
para a historiografia não formalista. É ideia há muito consolidada que, em
1964, a ruptura da gestão civil e a administração do Estado e da sociedade
pelo alto mando militar foi projeto proposto, avançado e sustentado pelo
bloco proprietário dominante no país, já sob a direção da burguesia
industrial, sobretudo paulista.
Um
projeto de ruptura institucional já ensaiado quando do suicídio de Getúlio,
em 1954; da impugnação da posse de Juscelino Kubitschek e João Goulart, em
1955 e 1956; e do veto a João Goulart, em 1961. Todos aqueles ensaios anticonstitucionais,
apoiados no alto mando das forças armadas, eram expressão de poderosas
facções proprietárias que não haviam, porém, alcançado ainda o consenso em
favor do golpe, obtido em 1964.
Em
todos aqueles movimentos, as classes proprietárias arrastaram atrás de si
seus partidos, seus movimentos, suas organizações de classes, os múltiplos e
amplos segmentos sociais de pequenos proprietários ou assalariados sob sua
hegemonia plena ou parcial. Jamais houve no Brasil ou no exterior golpe
militar digno do nome que não expressasse poderosos segmentos civis.
Por
além das aparências, ditaduras militares ou militarizadas como o fascismo, na
Itália, o salazarismo, em Portugal, o nazismo, na Alemanha, o franquismo, na
Espanha, chegaram ao poder em representação do bloco social burguês e
proprietário dominante, que expressaram enquanto dirigiram o Estado. Mesmo
contando com uma maior ou menor autonomia relativa, sobretudo em médio e
curto prazo.
Quem
mandava em Hitler e Mussolini?
Nessas
ordens ditatoriais, o poder de fato foi mantido, sempre, pelas classes
proprietárias hegemônicas. Em forma geral, as forças burguesas entregaram o
poder a aparatos militarizados por não poderem exercer democraticamente sua
ditadura, como na Itália e Alemanha, ou por preferirem as formas autoritárias
para impor suas necessidades profundas, como no caso do Brasil.
Com
a ordem ditatorial, o alto comando militar transforma-se em espécie de
parlamento uniformizado, que se substituiu ao constitucional, no seio do qual
as forças proprietárias concorrentes digladiavam-se para implementar seus
interesses. No Brasil, o rodízio dos generais-ditadores ensejou uma mais
fácil expressão das necessidades e vontade das classes proprietárias
hegemônicas.
Afinado
sobretudo com os interesses bancários e financeiros nacionais e
internacionais, o projeto liberal-castelista foi rapidamente deslocado e
corrigido, sob a pressão da burguesia industrial, sobretudo paulista. Ela
impôs como seu delegado direto o jovem economista Delfim Netto, em 17 de
março de 1967, defenestrando o neoliberal Octavio Gouvêa de
Bulhões. A retomada da oposição popular nas ruas contribuiu certamente para a
modificação de orientação.
Por
detrás dos projetos militares divergentes expressavam-se sempre as facções
proprietárias que se uniam no escorcho dos trabalhadores e populares e se
digladiavam sobre os rumos da intervenção de Estado central em incessante
hipertrofia. A definição da ditadura como cívico-militar, sem qualificar essa
componente civil, retira e mascara a verdadeira essência de classe da
ditadura. Ou seja, seu caráter burguês.
Um
Salto para o Passado
O
conservadorismo que se abateu sobre o mundo após a vitória histórica da maré
neoliberal dos anos 1990 ensejou recuo dramático nas ciências sociais e na
compreensão do passado. Em retorno ao fenomenismo da
história política factualista, procedeu-se a um literal abandono da leitura
da história a partir de solução dos confrontos dos interesses sociais
profundos, determinados pelos indivíduos, organizações etc., que expressam e
os expressam.
Ditadura
e democracia no Brasil, de Daniel Aarão Reis,
constrói-se como encadeamento crescentemente ininteligível de epifenômenos
apresentados como fatos sociais e políticos essenciais. Nesse processo, a
ordem ditatorial é literalmente obscurecida como expressão da refundação
pelos segmentos burgueses dominantes de novo padrão de acumulação de
capitais, em detrimento dos segmentos trabalhadores e populares, que se
mantém substancialmente até os dias de hoje.
Retomando
a retórica ditatorial e conservadora, o autor vê o golpe como, inegavelmente,
movimento “defensivo”, para “salvar a democracia, a família, o
direito, a lei e a Constituição”, para “garantir a hierarquia e a disciplina”
nas forças armadas. [p.48] Proposta que não explica minimamente por que ele
já fora tentado, em circunstâncias históricas diversas, em 1954, 1955-6
e 1961, como proposto.
Nessa
reconstrução histórica socialmente pasteurizada, o projeto
“nacional-estatista” e “corporativista estatal” (sic) varguista e janguista
ressurge como política da ditadura, da Constituinte de 1988 e do primeiro
governo civil. Recorrência que torna praticamente incompreensível o sentido da
instauração e da superação da ordem militar. Ordem ditatorial, como apenas
visto, ensejada por razões totalmente conjunturais que, no livro de Reis,
assume dimensão histórica estrutural!
Quem
Perdeu, Quem Ganhou?
A
análise quase desconhece a substituição, pela ordem militar, do mercado
interno pelo externo como locus privilegiado da realização
da produção nacional. Inversão que permitiu a incessante expansão tendencial
da exploração absoluta e relativa da força de trabalho, desde então
marginalizada como segmento consumidor de produção dirigida agora
preferencialmente ao mercado externo. Desde a ditadura, degringolaria a
participação relativa do trabalhador na renda nacional.
O
autor desconhece a ditadura militar como lídima expressão da ação das classes
dominantes nos anos 1964-1985 e, a seguir, a participação de facções das
mesmas na sua desconstrução, conscientes, por um lado, da obsolescência
daquela ordem para a gestão da crise social e econômica em curso e, por
outro, interessadas em radicalizar a internacionalização da economia e a
privatização dos bens estatais.
O
autor propõe corretamente que, em 1º de abril de 1964, não estava dada a
derrota da esquerda “reformista”. Ela teria sido devida, essencialmente, à
sua “irresolução”. Entretanto, não se esclarecem as origens políticas,
sociais e ideológicas da dita “irresolução”, que jamais se deveu à rendição
de João Goulart, igualmente impossível de ser explicada apenas a partir de
suas idiossincrasias pessoais.
A
apresentação desconjuntada da situação mundial sequer sugere os reflexos no
Brasil do embate internacional entre o mundo do capital e do trabalho nos
anos 1960-1980. O que facilita apresentação caricatural da esquerda
revolucionária após 1964, corolário do encobrimento do caráter de classe da
dominação ditatorial. No final, são jovens que partem inconsequentes, sem
apoio na população e na realidade, para enfrentarem, armados de algumas
pistolas, revolução que ele vê como apenas parte de suas ilusões e
fantasmagorias.
Jamais
Ousar, Jamais Vencer
Nesse
verdadeiro limbo social, a proposta de Daniel Aarão Reis é clara.
Impulsionada apenas por seus desejos subjetivos, a esquerda revolucionária
encontrava-se derrotada antes mesmo de partir para a luta. Portanto,
não deveria, em nenhum momento e sob qualquer forma e meio, ter obedecido à
consigna de “ousar lutar, ousar vencer”. Para o autor, a própria revolução é
um sonho desvairado.
É
permanente a deslegitimação da luta revolucionária anti-ditatorial:
enfatizam-se os guerrilheiros “delatados pelos camponeses que os
revolucionários pretendiam salvar da miséria e da opressão”. Delação
ocorrida, lembra-se igualmente, por parte de “populares”, de “revolucionários
e seus esconderijos”. [77] O epitáfio da esquerda revolucionária não podia
ser mais revelador: “Longe de constituírem forças radicalmente inovadoras
[...] não passaram de uma última espuma das ondas levantadas pelos movimentos
anteriores a 1964”.
Portanto,
a derrota popular e dos trabalhadores diante do capital, após o golpe,
estava, definitivamente, marcada nos astros. Talvez porque não tenha havido,
realmente, derrota social, quando da ditadura. Sugestão que aflora
permanentemente no trabalho, sem jamais se materializar de modo tangível.
Entretanto, não são poucos os elogios à interação entre a “ditadura e a
sociedade” que produziu “um país próspero e dinâmico”. [p.78]
São
recorrentes as referências às obras positivas da ditadura – o Estatuto da
Terra, o BNH, o FGTS, o INPS, o PIS, o Pasep, o Funrural, o
fortalecimento do CNPq, da Capes, da Finep etc. E, nessa estrada, já em
franca derrapagem, Daniel Aarão Reis define a primeira metade dos anos 1970,
que até ele aceita como período da plena vigência da ditadura, mais como
verdadeiros anos de “ouro” do que como os propostos “anos de chumbo”! [p. 91]
A
orelha da contracapa de Ditadura e democracia no Brasil afixa
a foto do autor, que se abre em um enorme sorriso, seguida de breve biografia
que declara ser ele especialista em história das “revoluções socialistas” e
da “esquerda brasileira”. Ao terminar a leitura desse sempre instigante
ensaio, por um momento, me perguntei se o autor não estaria se rindo de mim e
de seus leitores.
Mário
Maestri é historiador e orientador do Programa de Pós-Graduação em História
UPF-RS.
E-mail: maestri@via-rs.net
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