|
ESCRITO POR MÁRIO MAESTRI
|
QUARTA, 11 DE JUNHO DE 2014
|
Para o gáudio dos
comerciantes de livros usados, Combate nas trevas: A esquerda
brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, de Jacob Gorender,
encontrava-se há longos anos esgotado. No ensejo do cinquentenário de 31 de
março de 1964, mais do que oportuna reedição dessa obra, pelas editoras
Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo, acaba de recolocar, a preço
acessível, o até agora talvez mais célebre trabalho historiográfico sobre o
golpe militar e, sobretudo, sobre a resistência armada a ele. Apresentamos aos
leitores informativa entrevista concedida pelo autor, em Milão, Itália, em 9 de
outubro de 1987, quando do lançamento do livro, ao historiador Mário Maestri,
então correspondente naquele país do Diário do Sul, publicação
sulina do grupo Gazeta Mercantil.
***
O lançamento do último livro de Jacob Gorender – Combate
nas trevas: A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada –
recebeu uma cobertura de imprensa pouco comum no Brasil. A Folha de São Paulo e
O Globo publicaram duas longas entrevista com Gorender e a revista Veja acaba
de fazer uma reportagem de seis páginas sobre o ensaio. O próprio tratamento
dedicado ao livro e ao autor pela Ática escapa ao comum. A editora desdobrou-se
para lançar o livro, simultaneamente em todos os estados do Brasil, e adiantou
a Jacob Gorender os direitos integrais da primeira edição, quando da assinatura
do contrato.
A trajetória política de Gorender, seu status como
pensador marxista e o caráter polêmico do livro explicam a movimentação em
torno do lançamento. Após dedicar três anos de intenso trabalho ao estudo,
Jacob Gorender viajou para a Europa para descansar e rever regiões do Velho
Mundo que conhecera como pracinha da FEB, durante a II Guerra Mundial. Jacob
Gorender recebeu as primeiras notícias sobre o lançamento de Combate
nas trevas na residência do correspondente em Milão, Mário Maestri,
onde concedeu uma longa entrevista ao Diário do Sul.
Mário Maestri: Gorender, por que tanta expectativa em torno do
lançamento de Combate nas trevas?
Jacob Gorender: O livro foi lançado na
segunda-feira e terá possivelmente alguma repercussão. Ele refere-se a um
crucial período da história brasileira que não pode ser apagado da memória de
nosso povo. O grande protagonista do ensaio é a esquerda. Não se trata de um
trabalho memorialístico. Apenas uns 15% referem-se a depoimentos pessoais do
autor. E, nessas passagens, me documentei e não me apoiei apenas em minha
memória. Não é também um livro sobre a repressão. O Estado repressivo entra
como o adversário da esquerda e do movimento popular. Trata-se de um trabalho
que resultou de uma pesquisa historiográfica. Neste sentido, é o primeiro livro
do gênero publicado no Brasil.
Mário Maestri: Há quanto tempo preparas o trabalho?
Jacob Gorender: Senti a necessidade de
intervir neste debate quando começaram a aparecer os primeiros depoimentos de
exilados. A partir da anistia, de 1979, comecei a reunir material para
escrevê-lo. Foi muito difícil encontrar a documentação. Não há arquivos sobre
as organizações clandestinas de esquerda. Boa parte do material foi perdida ou
é inacessível. Felizmente, muitos companheiros me forneceram uma abundante
documentação, quando souberam que me dedicava a este trabalho. Foi-me de grande
valia o acesso permitido pelo bispo dom Evaristo Arns às cópias dos 750
processos do Superior Tribunal Militar, reunidas para a edição do livro Brasil
nunca mais. Iniciei a redação há três anos, em 1984.
Mário Maestri: Quais são os grandes temas do livro?
Jacob Gorender: Um terço do livro traz
uma condensação historiográfica do processo que resultou no golpe de 1964.
Trata-se, de certa forma, de um desenvolvimento das teses que apresentei em meu
ensaio A Burguesia Brasileira (São Paulo: Brasiliense, 1981).
Neste particular, minha principal tese é que o populismo foi um processo que
serviu à burguesia nacional durante um longo período e, depois, foi abandonado
pela própria burguesia, quando não servia mais. O golpe de 1964 procurava
eliminar da política estatal os resquícios populistas. O mesmo objetivo fora
tentado, inutilmente, por via institucional, no período Jânio-Jango. Lançou-se
então mão do golpismo.
Mário Maestri: Como definirias o populismo?
Jacob Gorender: O populismo foi uma
forma de política burguesa para construir a nação burguesa com o consenso dos
operários. Ele tinha, porém, um grande pressuposto: os trabalhadores não podiam
ultrapassar certo limite. O populismo não podia dar forças à classe operária.
Getúlio e Juscelino praticaram, com o apoio das classes dominantes, a política
de industrialização, até que ela entrou em choque com os interesses do
imperialismo. Tanto um como o outro tiveram sempre o aval do PTB e do Partidão (PCB).
Quando o populismo começa a esgotar-se, a burguesia procura outras
alternativas. O golpe farsesco tentado por Jânio foi uma antecipação do golpe de
64. O período de Jango é marcado por esta constante tentativa da burguesia de
pôr fim à política populista. Jango tenta responder, organizando o seu golpe.
Mário Maestri: Defendes que Jango organizava um golpe?
Jacob Gorender: Um golpe
constitucional. No final do seu governo, Jango preparava um golpe. Apesar de
isto nunca ter sido discutido com clareza no PCB, o continuísmo foi apoiado por
Giocondo Dias e por Luís Carlos Prestes. Prestes chegou a apoiar publicamente o
continuísmo de Jango. Esta política foi negativa para a esquerda. Nas
altas esferas, políticos como Brizola e Arraes sentiram-se lesados nas suas
expectativas presidenciais. E, neste momento, um empecilho constitucional
dificultava a candidatura de Brizola. Era o tempo de “Cunhado não é parente...”
Mário Maestri: Qual foi o papel do Partidão nesta
conjuntura?
Jacob Gorender: Os comunistas possuíam
um forte movimento sindical, estudantil e camponês, apesar de, desde os anos
50, não possuírem mais monopólio da esquerda. Tínhamos, então, as Ligas
Camponesas, a Polop (Política Operária), o brizolismo, os trotskistas, o
movimento dos sargentos e marinheiros etc. Havia surgido uma esquerda católica,
a Ação Popular (AP). Tinha ocorrido a grande cisão que resultou no PC do B. Mas
o PCB era grande força da esquerda. Estes foram anos de ouro do Partidão.
Hoje ele tem um significado residual em relação àquela época. É uma sobra.
Mário Maestri: Quais foram as consequências das políticas do
PCB?
Jacob Gorender: Defendo que a derrota
de 64 deve-se ao fato de o Partidão ter entregado a chefia do
movimento a Jango. E Jango não quis lutar. Pior, ordenou que não se lutasse. Em
1964, havia possibilidade de vitória (popular). É certo que havia risco.
Poder-se-ia vencer ou perder. Creio que as possibilidades da esquerda e da
direita eram as mesmas. A direita e os militares não estavam tão preparados.
Castelo apavorou-se quando o (general Olimpo) Mourão (Filho) precipitou o
golpe. A força naval norte-americana (a operação Brother San) só
chegaria no dia 11, trazendo armas, munição e combustível. Havia um tempo para
preparar a resposta militar. Não é verdade que a CGT e os sindicatos não
tivessem força. Não aceito a tese de R.A. Dreifuss (1964: a conquista
do Estado. Rio de Janeiro: Vozes, 1981) que, usando categorias gramscianas,
afirma que, com o golpe, a burguesia teria conquistado um novo consenso. Ela
abandonou o consenso populista pela repressão direta. Acredito que 64 foi o
auge da nossa luta de classe do século XX. Desde então, não há mais lugar ao
populismo.
Mário Maestri: E o Brizola?
Jacob Gorender: Brizola pode chegar ao
poder, mas vai ser tão repressivo como qualquer general.
Mário Maestri: A análise de 64 não é o principal objetivo do
livro?
Jacob Gorender: Mais de 70% é sobre o
pós-64. A vitória do golpe resultou na desagregação do PCB e um importante
debate, até 1967. O debate levou a cisões internas e à fundação, com a
participação de membros do comitê central, da ALN (de Carlos Marighella e
Câmara Ferreira) e do PCBR (de Mário Alves, Apolônio de Carvalho e eu). Surgiu
um quadro da esquerda completamente diferente. Prestes e Giocondo [Dias]
chefiaram a defesa da linha pacifista e se opuseram a mudanças políticas.
Mário Maestri: Não é muito simpático ao “Cavaleiro da
Esperança”.
Jacob Gorender: Só se for a esperança
da burguesia! Era um dever meu restabelecer a verdade histórica. Meu livro é a
favor da esquerda. Os mitos fazem mal. Prestes tornou-se um herói mitológico.
Ele é um homem corajoso, de ideias, desprendido dos bens materiais. Como foram
e são inúmeros outros revolucionários. Na realidade, é um homem de pouca
cultura, um pensador medíocre. Em todos estes anos, não legou um só trabalho de
interpretação marxista da realidade brasileira. Apenas relatórios, informes
etc. Nem sempre escritos por ele. Foi sempre um desastre como político. Não
teve a capacidade de receber novas ideias ou compreender as conjunturas.
Faltou-lhe sempre o contato real com a população brasileira. Como um político
foi um desastre.
Mário Maestri: Voltemos à esquerda.
Jacob Gorender: Procuro descrever o
importante debate e as influências das experiências externas (Cuba, Argélia,
Vietnã etc.) que precederam o lançamento da luta armada a partir de 1968. Falo
das tentativas guerrilheiras dos brizolistas, das origens e das ações das três
primeiras organizações armadas marxistas (ALN, Colina, VPR). Nesta época, as
outras organizações não se dedicavam à luta armada. Em 68, ocorrem os últimos
grandes movimentos de massa, sindicais, estudantis e populares. A direita
militar preparava-se para golpear os últimos resquícios de direitos
democráticos. As ações armadas foram as justificativas. O Ato Institucional nº
5 viria de qualquer maneira. A desculpa foi o caso Moreira Alves. Um discurso
quase insignificante... Com o retrocesso do movimento de massa e o regime
repressivo, as organizações que não se dedicavam à luta armada (PCBR, AP etc.)
viram bloqueadas suas ações. Ocorre então o que chamo uma imersão geral das
organizações na luta armada.
Mário Maestri: Esta participação na luta armada foi geral?
Jacob Gorender: O PCB, que era
pacifista, logicamente ficou à margem. O PC do B manteve-se, até lançar a
guerrilha do Araguaia. O único grupo não-pacifista imune à guerrilha foi o POR
(trotskista). Refiro-me a momentos importantes desta conjuntura: os sequestros,
o cerco do vale do Ribeira etc. No relativo à morte de Marighella, procurei
estabelecer a verdade histórica. Não podia permitir que a interpretação do frei
Betto, sobre a CIA e os dominicanos, em seu livro Batismo de Sangue,
continuasse sem respostas. Refiro-me a alguns casos não conhecidos pelo
público, como o relacionamento mantido por Marighella e (Hermínio) Sacchetta.
Este último fora expulso do PCB, há muito, como trotskista, e terminaria sendo
duramente atacado por Jorge Amado, em (o romance) Subterrâneos da
liberdade.
Mário Maestri: Enfim, o que ensinaria teu livro?
Jacob Gorender: Eu não ensino nada. A
esquerda marxista brasileira fez recurso à luta armada em dois momentos da
história: em 1935 e 1968. O que não é muito comum na América Latina. Na última
experiência, praticou o foquismo e o terrorismo. O milagre econômico e o
isolamento do movimento de massas tornavam impossível uma vitória. Uma
experiência que deve ser estudada sem preconceitos. Apresento esta ação
política como o recurso ao que chamo de violência incondicionada. Ou seja,
quando não estão dadas as condições históricas.